Excelência, eu vi!
Eu estava entre o fim da infância e início da adolescência e já adorava música. Aquela era uma noite especial, portanto sentei em frente à TV, imagem tremelica em preto e branco, para acompanhar o resultado do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. O Teatro Paramount, de São Paulo, estava lotado. O público vibrava, cantava junto, vaiava e aplaudia e com fervor o que estava presenciando naquele momento. Era um espetáculo histórico que mudaria a MPB, em plena repressão da ditadura militar.
Não lembro se eu preferia algumas das três classificadas, mas olhando retrospectivamente era difícil saber qual a mais bonita. A grande vencedora foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam.
Era um, era dois, era cem/Era um dia, era claro/Quase meio/
Era um canto falado/Sem ponteio/Violência, viola/Violeiro/
Era morte redor/Mundo inteiro…
A segunda colocada foi “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. Eu ficava encantada como aquela canção conseguia contar em detalhes um trágico caso de amor. Daria um roteiro de filme a disputa de José e João por Juliana durante o eio dominical dos operários ao parque.
Foi no parque que ele avistou Juliana/ Foi que ele viu/ Foi que ele viu Juliana na roda com João/Uma rosa e um sorvete na mão/ Juliana seu sonho, uma ilusão / Juliana e o amigo João/ O espinho da rosa feriu Zé / E o sorvete gelou seu coração
Em terceiro lugar, ficou a composição de um jovem de 23 anos , dono de lindos olhos verdes, cujos versos criticavam a repressão com a necessária sutileza.
“A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega o destino pra lá”.
Chamava-se “Roda Viva”, o mesmo nome da peça teatral que mais tarde seria proibida pela Censura Federal. Durante décadas foi também trilha sonora do programa da TV Cultura.
Conto essa história porque a juíza substituta do 6° Juizado Especial do Rio de Janeiro sugeriu a extinção da ação apresentada pelo compositor Chico Buarque contra o uso de “Roda Viva” em mensagem antidemocrática nas redes sociais pelo deputado Eduardo Bolsonaro. A magistrada alegou que Chico não comprovou a autoria da música em juízo. Diante do recurso impetrado pelos advogados, ela negou novamente. Nem me atrevo a tentar entender essa decisão tão macondiana.
Quero colocar-me à disposição de sua excelência como testemunha ocular. Eu vi e ouvi, na TV Record, naquela noite extraordinária de 1967, a locutora chamar para cantar “Roda Viva”, o grupo MPB-4 e o autor, Chico Buarque de Holanda. Doutora, pode me arrolar que eu vou, mas chame qualquer brasileiro e ele lhe dirá a quem pertence esses versos.
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração!
[Brígida De Poli]
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